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O Ofício de Trevas, que combina liturgia e música sacra, já se inscreve entre os momentos mais significativos da cultura religiosa
A Matriz de São Sebastião, em Conselheiro Lafaiete, foi mais do que um templo: tornou-se palco, cenário e altar para o Ofício de Trevas — uma das mais expressivas celebrações da Semana Santa na cidade. Na quarta-feira, dia 16, às 20h, as luzes se apagaram lentamente, dando lugar à escuridão simbólica que marca esse ritual ancestral. Mais do que a ausência de luz, a penumbra instaurada carregava a densidade do mistério cristão: a agonia no Monte das Oliveiras, onde o silêncio pesa como prece e a música se transforma em lágrima vertida em canto.
Com a igreja repleta, o público — que a cada ano cresce em número e sensibilidade — acompanhou com reverência a cerimônia que se consolidou como tradição sob a coordenação do padre Daniel Marcos. O Ofício de Trevas, que combina liturgia e música sacra, já se inscreve entre os momentos mais significativos da cultura religiosa de Minas Gerais na contemporaneidade.
“O coro precisa cantar por todos aqueles que Jesus abraçou — os excluídos, os que sofrem, os doentes, os invisíveis da história. Cantar os responsórios é carregar essas dores com beleza e dignidade", destacou o maestro Geraldo Vasconcelos, regente do Madrigal Roda Viva, responsável por conduzir o repertório da noite.
A programação musical incluiu os intensos Responsórios das Matinas, de Jerônimo de Sousa Queirós, compositor mineiro do século XVIII. A obra barroca ganhou novo fôlego na interpretação do Roda Viva, que contou com a companhia do Quarteto Terra Sonora, de Mariana, formado por Gustavo Fechus (violino), Maria Emília Dutra (flauta transversal), Everson Oliveira (violoncelo) e Vitor Gomes (órgão). O diálogo entre vozes e instrumentos imprimiu à cerimônia uma atmosfera de refinamento e emoção.
As reações do público traduziram o impacto da noite. Dona Marilda Baêta, emocionada, comentou: “Parecia que eu estava diante de uma tela de cinema, assistindo a um filme clássico.” Já o senhor Francisco, com os olhos marejados, afirmou: “Ouvi uma música que cura o corpo e a alma. Estou voltando para casa em paz.” O jovem Bernardo, inspirado, disse: “Foi tão lindo que agora eu quero estudar música.”
Um dos momentos culminantes foi a execução do Miserere (Salmo 50), na versão de Manoel Dias de Oliveira, outro ícone da música colonial brasileira. A obra ganhou intensidade nas vozes das solistas Andreia Marçal (contralto) e Giselda Rodrigues (soprano), que emocionaram a assembleia com interpretações sensíveis e vigorosas.
Geraldo Vasconcelos exaltou o desempenho do Quarteto Terra Sonora e destacou o comprometimento dos cantores do madrigal: “Foram dois meses e meio de ensaios intensos. Um processo didático, transformador. O coro está crescendo e tem predileção por obras setecentistas, especialmente dos nossos compositores mineiros.”
Num gesto carregado de simbolismo, Vasconcelos passou a regência da antífona inicial à maestra Édila Shirley, presidente e integrante do coro. A iniciativa foi não apenas um tributo à sua competência, mas também um ato de reconhecimento do protagonismo feminino na música coral.
“Dar lugar à regência da Maestra Édila Shirley é reconhecer a competência, a história e a presença potente das mulheres que sustentam a música com coragem e excelência. Que esta regência inicial, delicada e firme, seja o fortalecimento de um tempo em que as mulheres estejam naturalmente no pódio da vida. Aqui, a música não compactua com a exclusão. Aqui, ela é voz de afirmação”, enfatizou Vasconcelos.
Ao final da cerimônia, o padre Daniel Marcos, visivelmente tocado, confirmou o retorno do evento para 2026: “O Madrigal Roda Viva e o Terra Sonora já estão convidados.”
Assim, o Ofício de Trevas reafirma sua relevância: não apenas como celebração litúrgica ou concerto sacro, mas como experiência estética e espiritual que atravessa o tempo. Uma travessia coletiva pelos abismos da dor e pelos horizontes da esperança — onde fé, arte e comunidade se encontram em profunda comunhão.
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Postado por Rafaela Melo, no dia 18/04/2025 - 17:20