foto: divulgação
Depois que eles se reencontraram, as angústias da solidão retornaram à vida dela. Antes, sentia-se sozinha, lidando com a despedida de um amor. Agora, ainda sozinha, estruturava o luto do luto, a despedida da despedida, procurando sinônimos para a palavra viver.
É claro que viver é um verbo-ato. De certo modo, há uma redundância em associar verbo a ato, mas a repetição de significados pode ser uma tentativa de inscrever, de fazer uma inscrição. A vida se realiza em ato, e o sinônimo para esse ato, a vida, poderia ser o amor. Mas o amor que ela imaginou para aquela relação rompida não poderia existir, pois as marcas de um choro-soluço ainda estavam presentes, vivas, contradizendo o que ela compreendia como existência.
Para ela, viver era o mesmo que nascer e renascer. Nascimento é o princípio de algo – fiat lux. E renascer é tornar a nascer, adquirir uma nova vida, renovar-se. Esse desencadeamento de palavras revela uma busca incessante por significações para o substantivo feminino: vida.
Ela se delongava em associações de palavras como as que foram narradas até aqui. Os laços predicativos buscavam um nome para sua dor, para a desconfiguração de seu corpo que se despedaçou naquela despedida. Recolheu os pedaços daquele amor, juntou-os em uma partida e os lançou pela janela.
No momento do arremesso, ela estava a caminho de uma cidade cujo nome remete a um santo. Talvez a viagem, que colaborou com o início do luto daquele relacionamento, tenha sido uma tentativa de criar narrativas para o amor, evidentemente, para a vida. Ela transformava a palavra “São” – nome próprio que acompanhava o santo daquela cidade – em “sã”, adjetivo que significa boa saúde, equilíbrio e prudência.
A cura não era o amor ou os amores que viveu. Ela sabia de suas dores. Vivia os rompimentos na carne, no corpo. A reconquista de seu ânimo estava em amar a si mesma. Não como um ato narcísico, termo usado de forma equivocada no cotidiano da maioria. Amar sua subjetividade era desprender-se do outro, dos outros, dos termos externos, das condições opressivas supostamente sutis vindas de fora.
O que importava para ela era a vida interior. As contradições dos rompimentos estavam nas elaborações de novos vocábulos. Suas apostas eram descobertas e desnudes. Uma característica desta mulher era a fidelidade aos conceitos. Reelaborar as verdades das nomeações e significações fazia parte do que ela compreendia como luto. Por isso, viver a despedida de um amor, romper com um amor, remetia a uma contradição de palavras. Pois ela pensava que não se rompe com o amor, não se despede de um amor, já que o amor é vida.
“Não?”, ela interrogava. “Não”, ela afirmava.
Amor é substantivo, amar é verbo. A dualidade das significações a fazia sentir-se incompleta. Produções a partir dos vazios geravam ressignificações paradoxais. Uma abertura que convocava costura. E era a dor que bordava, entrelaçava linhas, interrogava palavras, criava termos e fazia deles seu caminho de despedida. Inundada pelo tempo, ela buscava um guia que ratificasse seus sentimentos. Sabia, em suas intenções, que amar é romper. Assim, ela elaborava a vida. Transpunha o substantivo em verbo.
Viver é nascer e, para todo nascimento, há uma separação. Decepcionada com essa descoberta, concluía que era preciso separar. O dia da despedida foi um corte e nunca seria reparado. Não havia sinônimo para reparar. Ela escutou isso em um sonho, após uma noite em que o onírico e o real foram fiéis aos seus desejos, convocando-a a uma escrita.
A propósito, nos meses de desempregos e separações das palavras, buscou e encontrou na literatura algumas saídas e descaminhos. Leu, associou e perguntou sobre o mistério dos paradoxos, pois mergulhar nas significações do amor e da vida eram suas instâncias norteadoras para a realidade cotidiana. Empreendeu uma sociedade consigo mesma e questionou qual é seu lugar nesta despedida, neste rompimento.
Leïla Slimani escreveu em “O perfume das flores à noite” * que “parece inviável habitar um lugar que não tenhamos a possibilidade de abandonar, de deixar. Habitar é o contrário do aprisionamento, da imobilidade forçada, da inércia”. Esta passagem de Slimani remeteu à mesma passagem que ela comprou em busca de sua sanidade para um outro território, quando jogou os fins daquele amor pela janela. Sem dúvida, o “vivo entremundos” de Slimani é transitar de uma condição à outra. É autorizar a beleza da redundância e a falta de significações ou ressignificações das palavras. Nesse lugar paradoxal se encontram uma despedida e um rompimento.
“Por muito tempo, detestei ser tão nervosa e instável. Minhas contradições eram insuportáveis. Eu queria ser aceita e depois não queria ser um deles. Ter vários países, várias culturas, pode levar a certa confusão. Somos daqui e de outro lugar. Nós reivindicamos a condição de estrangeiro eterno e ao mesmo tempo detestamos sermos vistos como tal. Agimos de má-fé”, escreveu Slimani sobre buscar um lugar. E acrescentou: “É possível escrever quando não temos um bom solo? O que podemos contar quando não nos sentimos de lugar algum?”. Ir à procura de um lugar significa abrir-se para a possibilidade de descobrir um espaço, independentemente do que possa conter.
Há algo contido em um espaço? És passo.
Foram as entrelinhas que conjugaram as palavras. Permeada por inquietudes e apoiada no tormento da obra “O perfume das flores à noite”, que a acompanhou nas viagens dos lutos, criava significações criminosas, rompia com os significados, com o que estava pré-estabelecido e, fundamentalmente, com as nomeações para o substantivo amor e para o verbo amar.
Com Milton Nascimento e os Borges, fazia-se a interrogação: “Quem sabe isso quer dizer amor?”.
“Isso ou quem quer dizer amor?”, ela se perguntava.
Dizia sobre o amor no advindo da escrita. Acreditava, talvez temporariamente, que amor e amar só existiam em palavras. Por isso, eram efêmeros em seus significados e conjugações com a vida. Ela se descobriu com Slimani, quando leu: “Tenho aversão a explicações. Quero deixar perguntas sem resposta porque é nesses fossos, nesses buracos negros que encontro o material que cai bem à minha alma. É lá que teço minha tela, que invento espaços para a liberdade e para a mentira, que são, a meus olhos, uma única e mesma coisa (...)”. É por isso que “a literatura não se presta a restituir o real, mas a preencher os vazios, as lacunas”.
Encontrou-se na literatura quando tentou preencher os hiatos e vãos das palavras, aceitando-os e provocando-os. O tremor da pálpebra incitado pela leitura e fidelidade ao seu próprio texto descortinou uma cura que está na palavra, concluiu.
* SLIMANI, Leïla. O perfume das flores à noite. Trad. Francesa Angiolillo. 1 ed., Rio de Janeiro: HarperCollins. Brasil, 2024.
Renata Satller do Amaral é psicanalista e professora universitária. Sua investigação acadêmica objetiva conceituar o amor em psicanálise, artes, literatura e filosofia. Esta coluna dedica seu ensaio com as letras, fazendo bordas e promovendo horizontes para além dos termos. Contato: [email protected]
28 de agosto de 2024.
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Postado por Nathália Coelho, no dia 29/08/2024 - 18:20