Esta semana, a coluna conta um causo acontecido em priscas eras nas barrancas do Velho Chico:
?Amanhece e a neblina se encontra com as águas do Rio São Francisco. Sabiamente, o joão-de-barro pega na margem a massa para construir sua casa. Os pássaros-pretos voam em bando, por cima das árvores que filtram o sol da manhã. Capim-gordura alto até chegar à margem do rio. Olhar atento. Perigo de cobra saindo do meio das pedras. Quatro pescadores descem o morro, carregando as tralhas e já negaceando de longe para ver se enxergam a canoa com outros três companheiros madrugadores.
Ainda do barranco, avistam as matrinxãs borbulhando a água. Logo estão debaixo da velha gameleira, onde dois rios se encontram ? ambos de igual fundura ? tendo nas margens o mesmo terreno arenoso. As águas ali são profundas. Forma-se um sumidouro, um remanso que engana os mais desavisados com suas espumas. Porém, é onde se pescam os melhores peixes.
É fim das cheias e as águas baixam. O rio míngua de tamanho. O lugar é excelente para uma pescaria, pois a gameleira cobre o rio com seus galhos até quase a outra margem, seus frutos caem na água, fazendo uma ceva constante dos peixes. Alguns companheiros se dispersaram com o passar dos anos, mas a maioria continuava ali, porque, para aqueles pescadores, aquilo era uma tradição: se reunirem todo ano para uma pescaria! Na verdade, para eles nem era tão importante chegar ao rio e pegar o peixe. O bom mesmo era a arrumação da traia; a expectativa que tomava conta de todos; o fato de passar a Quaresma contando os dias até chegar a Semana Santa...
Pescador é um ser estranho, faz todo um ritual para ir para a beira do rio, anda quilômetros a pé, no meio dos matos, carregando muito peso e quando chega, escolhe um lugar e ali fica horas e horas sozinho, em silêncio... Os mais pacientes preferem vara de anzol, isca de minhoca.
Ajeitam-se nos barrancos e ficam a cismar, vigiando a água. Ataque de mosquitos ou marimbondos não faz nenhuma diferença. O importante é o prazer de pescar. E por que cada ação nesse mundo é uma aventura e um aprendizado, quando a invasão é feita na intenção de interagir com a natureza, ser parte dela... Bem ao contrário dos pescadores ambiciosos, esses mesmos, que usam redes, tarrafas e até bombas e não se contentam com pouca coisa. Aos poucos, vão acabando com os peixes e destruindo os rios...O dia estava lindo! Céu claro, sem nuvens. Já era tarde e não haviam pescado sequer um único peixe! Até que o Zé gritou, lá do outro lado do barranco:
? Acode aqui, compadre Gaspar! Acho que peguei um surubim!
? Nossa! Ô compadre, isso não é surubim! Isso é um baita dourado! Segura firme! Não deixa escapulir, não!
Era uma beleza ver o peixe da cor de ouro, dando saltos, tentando escapulir do anzol, naquele final de tarde. Aprumando o corpo, dava saltos, sacudindo desesperadamente a cabeça, bamboleando, tentando escapar! O Zé segurava a vara de anzol, dando e puxando a linha, numa bonita luta com o peixe, até que este se entregou derrotado, não sem antes tentar uma fuga derradeira. E o dourado foi o único peixe fisgado naquele dia...
O sol seguiu viagem e os companheiros se reuniram debaixo da gameleira, onde estava montado o acampamento. Acenderam o fogareiro e o Zé se preocupou ao ouvir o Juarez avisar:
? Hoje eu só quero peixe! Nem precisa de arroz pra mim.
? Vai ser difícil um dourado alimentar sete homens com essa fome que estamos, retrucou alguém a seguir.
Sob a luz fraca do lampião, ao som do velho radinho de pilha, os amigos esvaziaram um garrafão de cachaça, enquanto o arroz cozinhava na panela e postas do peixe eram fritas e servidas num prato, correndo a roda, sempre regadas a mais pinga. E assim, o Zé ia fritando e a turma comendo. E bebendo. O arroz ficou pronto e o Zé mais tonto que um gambá... Ainda fritava peixe! Jantaram arroz e peixe com fartura!
Depois de certo tempo, ninguém mais se aguentava de tanto comer peixe frito. E a frigideira no fogo chiando... Foi então que um dos amigos, mais sóbrio, comentou:
? Uai sô, estou encafifado de ver o tanto que esse dourado rendeu! Parece até um milagre! Somos sete pessoas e todos nós comemos peixe até não poder mais e ainda tem peixe frito no prato e peixe fritando ainda no fogão!
Curiosos e confusos, os companheiros pegaram o lampião e aproximaram-no da trempe onde a frigideira ardia. Aí descobriram o tal ?milagre?: a fumaça do fogareiro armado debaixo da gameleira se espalhava, indo até os galhos da árvore que estavam cheios de mandruvás. O efeito da fumaça tonteava as larvas, que despencavam exatamente dentro da frigideira de óleo quente...
Serviço
Este causo é um dos 52 textos presente no livro: "Ao Pé da Serra - Contos e Causos da Canastra", da escritora Maria Mineira.
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Escrito por Pesca, no dia 09/12/2016